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Rosa e Graciliano encontro de mestres
Rosa e Graciliano encontro de mestres. Dois gigantes da literatura
Rosa e Graciliano encontro de mestres narra uma história curiosa de dois gigantes da literatura brasileira. Nesse terceiro programa do Canal Raradiolíngua do Acelera Texto, com a Regina Pereira, você conhecerá detalhes de um concurso literário em 1938 e seus desdobramentos.
OUÇA AQUI: Rosa e Graciliano encontro de mestres
Leia a transcrição do áudio:
Acelera Texto
Este é o seu Rádiolíngua, canal de áudio do Acelera Texto – seu laboratório de Escrita Digital. Conosco está a Regina Pereira – ela fez da língua portuguesa seu ofício como repórter, revisora, checadora. É também uma leitora apaixonada. Hoje vamos começar com um encontro entre um escritor e um livro.
Regina Pereira
O encontro de Graciliano Ramos num concurso de contos com o que viria a se tornar mais tarde Sagarana sem saber quem é o seu autor e suas observações sobre as mais de 500 páginas determinam, anos mais tarde, o apuro da recomposição e da refação de Sagarana. Do mestre consagrado para o mestre que surgia. Esta é a história que vamos contar neste bloco de Radiolíngua.
AT
Então vamos lá!
Regina
Em 1930 Guimarães Rosa se forma em medicina, com apenas 22 anos, se casa e vai clinicar em Itaguara, cidadezinha perto de Belo Horizonte. Ele não nasceu como escritor do tamanho que o vemos hoje. Trilhou um caminho convencional no início até chegar ao ponto de partida de consagração que é Sagarana. Nesta época ele se rascunha como escritor participando de concursos. Teve alguns contos premiados e publicados na revista O Cruzeiro reunidos postumamente em Antes das Primeira Estórias. Como ele mesmo dizia, são textos escritos de modo frio, presos a moldes alheios, feitos para ganhar um troco. Em 1936 vence um concurso da Academia Brasileira de Letras com um volume de poesia, Magma, só publicado também postumamente. Mas ainda não é o que ele almeja. Ele percebe que o que tem para dizer não cabe na forma da poesia, embora não a abandone totalmente, antes a embute em suas novelas, em seus contos e em seu único romance. Em 1938 participa mais uma vez de um concurso, o Humberto de Campos, da livraria José Olímpio, com o pseudônimo de Viator, o viajante, com um volume intitulado Contos. Um cartapácio de 500 páginas. Rosa pensava na época que o livro estava pronto, mas ponderava: “Apesar de haver muita moita má ainda a ser foiçada, melhor rende deixar quieto o mato velho e ir plantar roça noutra grota”. A outra grota se referia a Tutameia, que anuncia como o próximo projeto literário, mas que na verdade seria o último a ser publicado em vida. Projeto que levaria sua escrita ao grau máximo de experimentação.
AT
E o que tem Graciliano Ramos, autor do clássico Vidas Secas, com essa história?
Regina
Graciliano, que participou do júri, hesitava entre esse volume, que ele considerava desigual, e Maria Perigosa, de Luis Jardim, “que não se elevava nem caía muito”, e que acabou ganhando o concurso. Graciliano Ramos desconhecia o autor, mas reconheceu: “Aquele era trabalho sério em demasia. Certamente de um médico mineiro, lembrava a origem: montanhoso, subia muito, descia – e os pontos elevados eram magníficos, mas os vales desapontavam”. O envelope com o nome verdadeiro do autor se perdeu e o mistério de sua identidade permaneceu. Graciliano faz então um mea culpa: “Às vezes assaltava-me vago remorso e perguntava a mim mesmo onde se teria escondido Viator. Em conversa com José Olímpio, referi-me a ele. Se se cortasse alguns contos, publicar-se-ia um bom livro”. Anos depois, Graciliano finalmente encontra Viator na pele de um Rosa já diplomata e não mais médico e Rosa fala sem ressentimento sobre o volume preterido no concurso. No período em que morou na Alemanha servindo como cônsul adjunto, andou trabalhando no livro e, seguindo os conselhos de mestre Graciliano, suprime os contos mais fracos.
AT
Então Rosa, o escritor do sertão mineiro, também escreveu na Alemanha?
Regina
Sim, e numa noite, na Alemanha dominada pelo nazismo, acorda sobressaltado porque encontrara o título: Sagarana, vocábulo formado a partir de saga (de matriz germânica, “canto heroico”) e rana (do tupi, “ao modo de”). O livro já começa com um neologismo. Em carta a João Condé, Guimarães Rosa lembra a gênese e o percurso de Sagarana: “Quando chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito (notem bem “ter de ser escrito”), pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo. Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições — no tempo e no espaço. Isso, porque na panela do pobre, tudo é tempero e um rio sem margens é o ideal do peixe. Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não o que fiz) seria aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul Éluard: “O peixe avança n’água, como um dedo numa luva”… Um ideal: precisão, micromilimétrica. Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, ‘revendo’ paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de manhã. O livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas — em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945, foi “retrabalhado”, em cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez.”
AT
Tamanha era a obsessão de Rosa pela perfeição que Sagarana só ganha forma definitiva na quinta edição, publicada em 1958, 12 anos depois de seu lançamento. E Graciliano teve tempo de reconhecer valor de João Guimarães Rosa?
Regina
Teve. Graciliano relê Contos, agora Sagarana, com olhos e ouvidos de lince e constata: “O rumor dos cascos no chão duro se prolonga – e em um trecho ainda é martelado em dezesseis versos de cinco sílabas: “As ancas balançam, e as vagas de dorsos das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estratos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão…”
Graciliano dizia que onde alguns críticos viam defeito, como as descrições longas, ele via qualidades: “Movimentar uma boiada com vinte adjetivos mais ou menos desconhecidos do leitor, alargar-se talvez um pouco nas descrições. Se isto é defeito, confesso que o defeito me agrada”. Críticos como Antonio Candido entenderam a literatura de Rosa desde o primeiro momento.
AT
Grande Antonio Candido que nos deixou em maio de 2017…
Regina
Candido escreveu já naquela época: “Sagarana não vale apenas na medida em que nos traz um certo sabor regional, mas na medida em que constrói um certo sabor regional, isto é, em que transcende a região. A província do sr. Guimarães Rosa, no caso Minas, é menos uma região do Brasil do que uma região da arte, com detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal, tamanha é a concentração com que trabalha o autor. (…) Por isso, sustento, e sustentarei, mesmo que provem o meu erro, que Sagarana não é um livro regional como os outros, porque não existe região igual à sua, criada livremente pelo autor com elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia belíssima das suas histórias. Transcendendo o critério regional por meio de uma condensação do material observado (condensação mais forte do que qualquer outra em nossa literatura da ‘terra’), o sr. Guimarães Rosa como que iluminou, de repente, todo o caminho feito pelos seus antecessores”.
AT
E você concorda com Antonio Candido?
Regina
Sim. Sagarana, que Rosa diz ter escrito motivado pelas saudades que sentia do sertão, é um livro enganoso, a princípio parecia retomar os temas do regionalismo, àquela altura já desgastado, mas na verdade transpôs o regionalismo convencional, preso a estereótipos, a panos de fundo esgarçados, e fundou uma nova escola literária, a escola de um homem só. Uma literatura em que a paisagem não é pano de fundo, carpintaria, é sobretudo personagem. Sagarana é a primeira navegação de Rosa pelo sertão, um sertão ainda quase físico. Um sertão que vai se tornar o grande personagem da obra de Rosa, atingindo o clímax em Grande Sertão: Veredas e se tornando um sertão metafísico. Sagarana em seu lançamento confunde críticos e divide opiniões.
AT
E como termina essa história de Graciliano com o Rosa?
Regina
A impressão que o livro causa em Graciliano é tão forte que ele vaticina sobre Rosa: “Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus ossos começarem a esfarelar-se”. O mestre acerta na mosca: de fato, em 1956 Guimarães Rosa publica Grande Sertão: Veredas, três anos depois da morte de Graciliano, em 1953.
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