carregando...

Arquivo

Rádios, até mudos, contam histórias

Por Fernanda Pompeu em Arquivo

Em suas habituais andanças pela mineira Cordisburgo, terra natal de João Guimarães Rosa, Regina Pereira gravou, em vídeo, uma saborosa história para o Radiolíngua do Acelera Texto.

Veja o vídeo

 

Leia a Transcrição do vídeo

Regina Pereira 

Oi, pessoal. Nós estamos aqui na loja do Brasinha, onde cada objeto conta uma história e tem seu significado. Estou aqui colhendo um depoimento do Brasinha especialmente para o RadioLíngua.

Brasinha 

Eu sou o Brasinha. Meu nome de verdade é Zé Osvaldo. Vivo aqui no sertão de Minas, Cordisburgo. Meu objetivo é que todos os objetos aqui dentro contem uma história.

Eu tenho um apreço muito grande pelos rádios, porque as pessoas chegam e perguntam assim: Brasinha, você sabe se estão funcionando? Eu falo: Claro. Estão funcionando, pois alguém que trouxe contou uma história. E essa história é o rádio falando! É o rádio que fala.

Têm várias histórias. Tem a história do moço que trouxe um rádio e viu um dos rádios aqui. Ele falou para mim que o avô dele comprou um rádio desse novinho e foi ouvir o jogo Brasil x Uruguai no Maracanã, na Copa de 1950.

O avô reuniu todo mundo lá num lugarejo. Botou o rádio e todo mundo começou a ouvir. E aí o Brasil perde a Copa do Mundo dentro do Maracanã para o Uruguai. Ele pegou o rádio botou dentro da caixa, botou uma fita, botou lá em cima do guarda-roupa. Falou: Esse rádio nunca mais vai falar.

Mas é engano dele. O rádio continua falando, a gente continua contando essa história. Essa fala da Copa do Mundo de 1950 é falada por nós através do rádio. O rádio não cala. Ele não cala hora nenhuma.

As pessoas vêm, veem o rádio, contam de novela no rádio, de vários programas que eles ouviram na década de 50. Então o rádio continua funcionando. Ele nunca vai parar de funcionar. Ele conta história. A bicicleta antiga conta história, o relógio antigo conta história, o taxímetro conta história.

Os objetos vão contando histórias. Este é o meu objetivo: eu ajudo eles contarem suas histórias. Nada aqui está calado. Está tudo contando história.

Em frente à loja Ave Palavra

Brasinha, Zé Maria, Regina

 

Quem é o Brasinha?
Regina Pereira traçou o perfil deste sertanejo de Cordisburgo, Minas Gerias.
OUÇA O ÁUDIO:

 

Leia a Transcrição:

Acelera Texto
Quem é o Brasinha? Regina Pereira traçou o perfil deste sertanejo de Cordisburgo, Minas Gerias

Regina Pereira

Brasinha, o objeteiro.
Por José Osvaldo, praticamente só a mulher, Darci, o chama. Mas por Brasinha até os cachorros de rua de Cordisburgo o conhecem. Primo distante de Guimarães Rosa, este sertanejo de pele morena e olhos penetrantes adentrou na obra roseana pela proximidade com Juca Bananeira, que tinha um quiosque em frente à sua loja. Juca foi companheiro de infância de Rosa e é personagem de O burrinho pedrês, de Sagarana.

Desde então, Brasinha, o mais roseano dos roseanos, pratica uma liturgia: ler ao menos uma página da obra de Rosa por dia. E pesquisa o que ele chama “o quem dos lugares”, que consiste em identificar os locais reais onde se passam as estórias de Rosa. Da boca do sertão onde mora, percorre estes lugares atrás de pessoas que tenham uma boa estória para contar. Com certeza o verbo que ele mais conjuga é rosear.

Também conhecido como embaixador do sertão, articula a única língua necessária naquelas bandas: a do coração. Ele recebe qualquer um com um sorriso fácil e um prosa demorosa, gostosa, no meio da rua, detrás de um balcão, ou na porta da loja, onde nada é comerciável. O que ele faz é doar lembranças encarapitadas em objetos que remetem ao passado.

A justificativa para o que muita gente chama de falta de tino comercial é muito lógica: Tem objeto aqui que nem eu mesmo sei para que serve. Mas eu não posso vender nada, se eu vender, as estórias acabam, minha loja acaba”, diz Brasinha, como se assumisse também o papel de Sherazade do sertão.

Por consequência lógica o local é um celeiro de estórias. Nas cadeiras remanescentes do extinto cinema, moradores se sentam e relembram filmes, namoros e amores antigos. Pela máquina fotográfica de estúdio metade de Cordisburgo se reconhece em 3×4. Toda estação de trem tinha um bar. A visão do baleiro de vidro trouxe de volta as viagens da infância do homem que entrou aqui por acaso, deslumbra-se Brasinha.

Uma lata de margarina leva uma mãe a confessar que o nome do filho, Anderson Clayton, foi tirado do produto. Um Amigo da Onça de louça confunde o homem da roça, que o chama de Juscelino Kubitschek.

Uma piada recorrente (mas fato acontecido) dá conta que mais de uma vez Brasinha largou a loja semiaberta. A mulher pediu que ele corresse lá para fechar pois alguém podia roubar algum objeto. Ao que ele respondeu: É mais fácil alguém deixar mais um trem lá.

É vero, às vezes um morador passa, observa e volta, como a mulher que trouxe um saco de caramujos de pasto, que Brasinha transformou numa árvore-instalação. Os caramujos guardam uma memória afetiva da infância: emular o barulho do mar, tão distante do sertão.

Um de seus projetos é filmar as pessoas que entram na loja e relacionam as estórias pessoais aos objetos. Na cidade do Livro Vivo, a fachada estreita oculta um Museu do Sertão vivo, informal, o Museu da Palavra, o Museu das Estórias. Ultimamente Brasinha, que deu para se dizer objeteiro, evoca a figura de Bispo do Rosário no arquétipo que os une: colecionar e ressignificar os objetos.

Parte das coleções de latas, garrafas, ferros de passar, lamparinas, máquinas de costura, flâmulas, rádios, relógios já existia, para desespero da mulher, guardada na casa deles. A oportunidade de reuni-los se deu quando a Loja do Brasinha, administrada pela Darci, essa, sim, que vende confecções em geral, precisou ser ampliada e se mudou para o imóvel ao lado. Com o ponto vago, trazer o arsenal foi fácil. Depois, Brasinha renomeou o ponto: Ave Palavra, também título do livro póstumo de Guimarães Rosa. Uma saudação à palavra que perpetua estórias, que voa.

Nas paredes neologismos que estampam a obra roseana: funebrilhos, deslembrar, urubuir, desdoidar. Placas pintadas pelo próprio Brasinha registram frases marcantes da obra de Rosa e ditos populares. Logo na entrada, uma parece contradizer o espírito do lugar: Você não é o que junta, mas o que espalha. 

Acelera Texto
Nossa que bonito, você não é o que junta, mas o que espalha.

Regina
Mas pode-se dizer que Brasinha junta estórias na mesma proporção que as espalha. Por lá passam personagens que parecem ainda falar a língua de Rosa, como a doida mansa da cidade que entrou, olhou para todos e disparou: Vocês são bonitos, eu não, eu sou desquerida.

A princípio ninguém entende aquela confusão de objetos aparentemente sem propósito. Quem entra pela primeira vez se perde com tanta coisa para ver. E mesmo os habitués sempre descobrem novidades. O subtítulo da loja, Aqui já é Sertão, é uma resposta aos viajantes em dúvida sobre onde começa essa identidade que tanto nos atrai.

O burburinho das pessoas esperando o ônibus para voltar para a roça, a calçada cheia de compras em sacos e caixas, os “vaqueiros” montados nas Caloi Barra Forte, Brasinha no meio dessa narquia, não deixam dúvidas de que, sim, ali começa o sertão, esta espera enorme.

Você tem uma história de rádio? Compartilhe com a gente.

 

 

Compartilhe

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *