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Primeiras Estórias – alumbramentos do Rosa

Por Fernanda Pompeu em Arquivo

A iguaria é o livro Primeiras Estórias, escrito pelo João Guimarães Rosa e lançado em 1962. Com a palavra, Regina Pereira.

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Este é o seu Rádio Língua, canal de áudio do Acelera Texto. Conosco está a Regina Pereira – ela fez da língua portuguesa seu ofício como repórter, revisora, checadora. É também uma leitora apaixonada. O prato de hoje é o livro Primeiras Estórias, escrito pelo João Guimarães Rosa e lançado em 1962. Fala, Regina.

Regina Pereira
Em 1962, Guimarães Rosa, depois de três obras publicadas e consagradas, já tinha atingido o status de grande escritor, inclusive internacionalmente. Seus livros, apesar da dificuldade do seu idioma próprio, estavam sendo traduzidos para diversas línguas. Mas cada novo patamar atingido é, para o autor, um triunfo e um perigo. A obra-prima impõe a obrigação de se reinventar. À expectativa criada por Sagarana ele soube responder e se superar com Corpo de baile e Grande sertão: veredas. E, claro, a expectativa continuava, cada vez mais alta. Todos se perguntavam: o que viria a seguir?

Acelera Texto
E o que viria a seguir?

Regina
Seis anos após o lançamento de duas obras caudalosas, Rosa surpreende com Primeiras Estórias. Na contramão dos anteriores, um livro feito de textos curtos. Mesmo críticos que festejavam a sua obra, como Paulo Rónai, não acreditavam que Rosa tivesse talento para textos curtos.

Numa entrevista à TV alemã, descoberta há poucos anos, que pode ser vista no documentário Outro Sertão, Rosa, apresentando o livro recém-lançado, diz que com ele queria caminhar no sentido do hieróglifo. Uma virada e tanto.

E neste novo neste livro tudo é inusitado e de novo diferente (como se isso ainda pudesse ser possível). Ele chegou causando interrogações, a começar pelo título: Por que estórias e não histórias? Estória (com E) em oposição a História (com H), território da invenção, da ficção. E Primeiras no sentido de primevo, de primitivo, de nunca contadas. E, como veremos depois, Rosa, apesar de ter escrito as Terceiras Estórias (Tutameia), nunca escreveu as Segundas. Enigma que continua rendendo até hoje. Vamos abordar este tema depois, quando falarmos de Tutameia, o último livro que ele publicará em vida.

E, como todo Guimarães Rosa, é um livro pensado, com uma estrutura planejada, inclusive graficamente.
A primeira edição traz uma capa com desenhos dos contos e um índice ilustrado, ambos sugeridos pelo autor e executados minuciosamente por Luís Jardim.

São desenhos que lembram cordel e fazem as vezes de resumos ou comentários visuais dos contos. Embora as ilustrações funcionem de maneira autônoma, as edições de Primeiras Estórias que as suprimem são um atentado à coerência editorial. A obra perde uma parte importante de sua composição.

Acelera Texto
E um livro de contos. E quantos contos há?

Regina
São vinte e um. Onze foram publicados inicialmente em O Globo. São 21 estórias divididas em dois conjuntos de 10, e, no centro do livro, a mais enigmática delas, “Espelho”, a 11ª, como ponto de reflexão. A primeira, “As margens da alegria”, e a última, “Os cimos”, têm uma estrutura narrativa similar e o mesmo personagem, o Menino, que experimenta a alegria das descobertas de “uma viagem inventada no feliz” no primeiro conto e a tristeza no segundo. Pode-se dizer que o livro é um “projeto arquitetônico”, com entrada nas “Margens da Alegria”, um centro no “Espelho” e uma saída pelo alto, em “Os cimos”.

Paulo Rónai foi quem melhor definiu Primeiras estórias. Ele disse: “Os personagens são todos,em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia”.

São narrativas epifânicas, cheias de revelações mágicas, sendo os personagens iluminados por surpreendentes e enigmáticas verdades. A maioria dos personagens de Primeira Estórias são taciturnos, desajeitados, ensimesmados, que nem tentam exprimir-se e passariam despercebidos, não fosse Guimarães Rosa lhes emprestar a voz. Reconstituir a fala deles e traduzir seu silêncio foi a tarefa a que ele se propôs. Uma fala desinventada e reinventada, segundo Zé Miguel Wisnik, “uma escrita líquida e gasosa, nunca sólida”. É como se o leitor lesse os textos pela primeira vez, mesmo que treleia, transleia, a estória que julga que conhece, que leu há tempo noutro tempo.

Acelera Texto
Primeiras estórias foi publicado em 1962, uma época especial para o Brasil, não é?

Regina
Sim. Primeiras estórias marca uma transição do Brasil, um momento em que Brasília foi fincada nas vastidões do cerrado. Em algumas das estórias de Primeiras Estórias os personagens se vão do sertão para a cidade, como se despedindo de um mundo, de um modo de vida. Uma tendência não só desta estória, mas da história de um Brasil que se moderniza. Rosa visita as obras da capital que está se erguendo no coração do país e testemunha a mudança da paisagem. “As margens da alegria” e “Os cimos” retratam essas viagens, e não por acaso abrem e fecham a moldura do livro.

Nesta moldura construída de palavras e estórias, podemos destacar “A Terceira margem do rio”, o conto mais lido e analisado deste volume, que já traz no título um enigma: o que seria esta terceira margem? O que ela comporta? Resumidamente é a saga, narrada pelo filho, de um pai que um belo dia desiste de tudo, constrói uma canoa, e passa a viver nela, sem nunca mais desembarcar. Passa a viver num lugar que é ao mesmo tempo perto e longe, pois inalcançável. É um não lugar, já que o rio, fisicamente, só comporta duas margens. O conto fala da loucura, do luto e da melancolia sem que se nomeie uma morte física. Já para Paulo Rónai não há espanto, pois, para ele, todos os rios do universo de Guimarães Rosa têm três margens.

Em artigo intitulado “Nas pegadas de Rosa”, o escritor moçambicano Mia Couto conta, de maneira deslumbrada, seu primeiro contato com um texto de Rosa: Quando chegou o primeiro livro, Primeiras Estórias, houve um fenômeno curioso. Eu não conseguia entrar naquele texto. Era como se eu não lesse, ouvisse vozes, eram vozes da minha infância. Os livros de Guimarães Rosa quase me atiram para fora da escrita. E, para entrar naquele texto, eu tenho de fazer apelo a um verbo que não é o verbo ler, que é um outro verbo que provavelmente não tem nome. O que me tomava principalmente não era a invenção de palavras, mas havia ali uma poesia, a tal arrumação que funcionava muito como os dançarinos de Moçambique, os dançarinos da África em geral, naquele exato momento em que eles estão entrando em transe para serem possuídos pelos espíritos. Aquele flagrante daquele momento em que aquilo já não é dança, mas já é outra coisa. Era isso que acontecia nessa linguagem. Era uma linguagem, quase uma linguagem de transe, que permitia que outras linguagens tomassem posse dela.”

Acelera Texto
É várias vezes, o grande Mia Couto declarou ser admirador do Guimarães Rosa…

Regina
Diferentemente das obras anteriores, plenas de ação, quando lemos estas estórias, estes contos, em que na maioria parece não haver enredo, temos a impressão de que nada acontece, mas o matreiro Rosa parece nos espiar por detrás de cada texto e nos traz a chave resumida em “O espelho”: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.

Passagens do Primeiras Estórias

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Regina Pereira vai rememorar a saborosa história, recontada por Wilson Bueno, acerca da gênese de “A Terceira Margem do Rio”, conto de Primeiras Estórias.

Regina
Rosa e a cristaleira.
João Condé contou esta história:

“No final de uma bela tarde de junho, Guimarães Rosa ao deixar o Itamaraty, onde dirigia a Divisão de Fronteiras, decide andar a pé um trecho do centro do Rio de Janeiro. Súbito, distraído a fumar o seu cigarro Yolanda, na ponta da piteira de osso de tartaruga, flagra-se, ao rumor e tumulto do trânsito da hora do rush, bem no meio da Presidente Vargas, larga avenida, de quatro pistas, no centro nervoso do Rio. Homem sensível, de traço feminil, ao perceber-se engolido pelo tráfego pesado, literalmente no meio da rua, Rosa quase tem um chilique. Salva-o o talento de predestinado das letras: tomando a avenida como a metáfora de um rio, fulmina-o, naquele exato instante, aquela que viria a ser uma das mais antológicas peças da literatura brasileira, e de todas as literaturas, o conto “A Terceira Margem do Rio”, de Primeiras Estórias. A peça inteira, sua montagem e textura, suas engrenagens e engenharias, lhe vem à mente. O seu começo, o seu meio e o seu fim. De um jeito mediúnico e de modo rigorosamente imprevisto. Guimarães Rosa, nervoso, ofegante, segue incólume por entre carros, buzinas, urros, freadas, desvios, acenando inutilmente para um táxi, mas já a caminhar na direção do primeiro ponto de ônibus. Não havia tempo a perder. De terno elegante encharcado de suor, embarca no primeiro lotação que leve ao Posto Seis, onde vive com a mulher, Araci, ao belo apartamento da rua Francisco Otaviano. Anos depois, ele próprio detalharia em depoimento célebre: aquela vez, repetia sempre, era como se equilibrasse aos ombros, sem figura de retórica, uma cristaleira. Uma cristaleira – enfatizava João Condé, pitando seu Hollywood – uma cristaleira mesmo, onde tremelicavam, impávidos, os mais finos cristais, isto é, personagens, diálogos, entrechos, tons, entretons, linguagem, embocadura. Toda a dobrante e dobrável estrutura de A terceira margem do rio.
– “Sabe do que o Rosa mais teve medo aquele dia?” – perguntava o bom Condé, fazendo uma pausa e já antegozando a própria resposta. – “O maior medo dele foi, aquele dia, o de topar com um amigo, sobretudo carioca…”
– “Temia, a sério, um abraço, desses efusivos e espalhafatosos, que só os cariocas sabem dar… Podia que fizesse, o abraço, desabar a cristaleira…”

Acelera Texto
Delicioso. E agora a Regina ler um trecho de “A Terceira Margem do Rio”:

Regina
“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto.
Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente —minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns 20 ou 30 anos.
Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu. Um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação.
Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retomou a olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.”

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